domingo, 5 de maio de 2024

Artigo: Rogério Ferrari e sua intensidade discreta

Foto: Pascoal Gomes

Paulo Dantão*

Pensem numa pessoa intensa. Inquieta. Insatisfeita. Engajada. Romântica. Sonhadora. Uma pessoa que sabia que nada estava certo, por isso corria contra o tempo. Fosse roqueiro, teria morrido aos 27. Mas era antropólogo, filósofo, fotógrafo das evidências que estão aí, nesse vasto mundo, mas que insistimos em deixar no turvo limbo.

Esteve com os curdos, palestinos, zapatistas. Testemunhou a derrubada do muro de Berlim. Era um ser humano muito especial, esse Rogério Ferrari. E se mexessem com ele, era capaz de sensibilizar, em silêncio e inconscientemente, uma redação inteirinha em sua defesa, como quando foi injustamente demitido no jornal Bahia Hoje.

Difícil aceitar essa sua partida agora, aos 56 anos. Novo. Com a cabeça flamejante, cheio de projetos que com certeza buscavam ajudar a humanidade. Sempre do lado onde a corda arrebenta. Nunca do lado do mais forte.
Num livro de Cortázar, seria um Cronópio. Num poema épico, seria intenso, sensível e humano, humano até não caber mais de tanta humanidade. Porque sua vida, sim, uma epopeia. Era um Spartacus. Somos todos Rogério Ferrari.

Lembram do filme Júlia, baseado no livro Pentimento, de Lilian Helmann? Lembram da personagem de Jane Fonda e de sua amiga, vivida por Vanessa Redgrave, ganhadora do oscar de melhor atriz coadjuvante pela atuação? Não sei bem por que, mas Rogério Ferrari me lembrava essa personagem Júlia, pelo engajamento. Queríamos de vez em quando arrancar-lhe uma gargalhada, e isso raramente acontecia, mas quando acontecia era mesmo muito bonito de se ver.

Numa entrevista no Jô, Rogério estava falando sobre a injustiça histórica que se comete contra o povo cigano e comparou esse absurdo com aquela antiga história de que os comunistas comiam criancinha viva. Jô não perdeu o mote: “Depois então descobriram que quem comia criancinha viva era o Michael Jackson”. E Rogério riu, mas percebe-se no riso a contenção. Era muito discreto.

Deixar-nos nesse momento, em que o bolsonarismo se alastrou que nem uma praga no país, é algo que não dá para aceitar. Precisávamos ainda muito de você, meu amigo. Mas tudo bem. Eu até entendo. Vai que o traste morre e tenta ludibriar Jesus Cristo no céu, querendo entrar, contando suas mentiras de sempre, você estará lá, ao lado de Cristo, com um dossiê completo sobre o genocida. Tudo fotografado. Provas materiais. E é isso que vai ajudar Jesus Cristo a dizer, em alto e bom som: Fora, Bolsonaro.

*Jornalista

20 de julho de 2021, 12:01

Compartilhe: