sexta-feira, 26 de abril de 2024

Eles desejam beijar-se na boca – por Davi Lemos

“Ah! Beija-me com os beijos de tua boca! Porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho, e suave é a fragrância de teus perfumes; o teu nome é como um perfume derramado: por isto amam-te as jovens”. Os primeiros versos do Cântico dos Cânticos falam de uma ânsia, de um desejo que a amada sente por seu amado. É o primeiro suspiro de quem deseja o enamoramento.

Escrito originalmente para as celebrações de núpcias no antigo Israel, a tradição cristã enxerga nestes versos, neste belo poema atribuído a Salomão, a união entre a alma humana (a amada) e o Cristo (o Amado, o Esposo). Torna-se assim mais próximo dos homens o Deus Altíssimo, visto em tantas culturas como inatingível ou inacessível. Traduz-se a relação entre Deus e os homens como uma relação de intimidade. Mas a intimidade pede tempo.

No século XII, São Bernardo de Claraval intuiu isto, que o beijo na boca necessita de tempo, que são necessários outros beijos para o que o desejo da amada, da nossa alma, seja consumado no beijo da boca ansiado já no primeiro olhar. O Amado é de todo atraente, mas necessita, por justiça, que a amada lhe seja digna – daí São Bernardo elenca outros dois beijos.

Diante do Amado, a amada reconhece a sua indignidade e beija-lhe os pés, segundo imagem descrita no Evangelho de Lucas que narra a mulher pecadora que lava os pés de Jesus com as lágrimas e os enxuga com os cabelos: eis o primeiro beijo. O beijo da justificação.

Mas o Amado também deseja o enlace, a união definitiva com cada homem e toma-os pelas mãos, erguendo-os. Quer que eles o imitem, que tomem-no como modelo, como meta; deseja-os como amigos. “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai”, segundo nos relata o Evangelho de João. A amada, a alma amante, beija-lhe então aos mãos: eis o beijo da santificação.

Entretanto ter amigos santos, andar com eles e contar-lhes o que ouve do Pai, os mistérios sobre vida e morte, não é suficiente para o Amado, que também é sedento de amor e ele exclama: “Teus lábios são como um fio de púrpura, e graciosa é tua boca. Tua face é como um pedaço de romã debaixo do teu véu”.

A amada também não se contenta e quer ir aos aposentos do Esposo e implora: “Conjuro-vos, filhas de Jerusalém, se encontrardes o meu amigo, que lhe haveis de dizer? Dizei-lhe que estou enferma de amor”. O desejo mútuo é então selado pelo beijo na boca, o beijos dos esposos, cujos corpos não mais lhes pertence, mas são completamente doados ao outro. “Isto é meu corpo que entrego por vós”. Uma só carne, um só corpo; amado e amante já não mais se separam. Amam-se, amam-se num beijo sem fim.

Davi Lemos é jornalista. Trabalhou no jornal A Tarde, na Tribuna da Bahia, no Correio da Bahia e cobriu as eleições de 2010 pelo Portal Terra. Foi assessor da Comissão de Cultura da CNBB. Ele escreve mensalmente sobre Religião no Toda Bahia. E-mail: davi_lemos@hotmail.com

09 de março de 2017, 18:02

Compartilhe: