sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Crivella, Frank Miller e a natureza imutável

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil e Reprodução "O Cavaleiro das Trevas"

Carlos Macedo

“O fim está próximo”, dizia a placa segurada por um anônimo no meio da multidão na fictícia Gotham City. A imagem, extraída dos quadrinhos de Frank Miller, na edição definitiva de “O Cavaleiro das Trevas”, lançado originalmente em 1986, veio à tona, não exatamente pelo seu tom profético, mas por um discurso que parece se repetir em meio a ciclos de avanços e retrocessos.

O caso da censura a obras de conteúdo LGBT na Bienal do Livro do Rio partiu de uma história em quadrinhos. O prefeito carioca mandou recolher, na sexta-feira, os exemplares de  “Vingadores: A Cruzada das Crianças”, por conta de um beijo gay que fazia parte da história e estava nas páginas internas da HQ. Era o começo de um roteiro cheio de reviravoltas.

Ainda na sexta, o youtuber Felipe Neto comprou 14 mil livros de temáticas LGBT para, posteriormente, distribuir gratuitamente a quem tivesse interesse na Bienal. O Tribunal de Justiça do Rio, no entanto, deu liminar favorável à Prefeitura, permitindo que a gestão municipal recolhesse o material classificado por Crivella como “impróprio para crianças”.

Neste domingo, a procuradora-geral, Raquel Dodge, solicitou que o STF intervisse, e seu pedido foi acatado pelo presidente da Corte, Dias Toffoli, que derrubou a liminar do TJ do Rio. Crivella prometeu recorrer, mas a Bienal encerrou hoje.

Reprodução/Redes Sociais

Tudo isso começa por conta de um ataque aos quadrinhos da Marvel, o que não é uma novidade, considerando o histórico desse tipo de arte. É nesse ponto que Frank Miller reaparece, com um texto publicado em 2006, na ocasião dos 20 anos de “O Cavaleiro das Trevas”. Ele relembra que, no início dos anos 50, um psiquiatra norte-americano escreveu um livro que injetava nos pais da época um medo com relação às histórias em quadrinhos, rotulando-as como a principal razão da “delinquência juvenil”.

Miller conta que o conteúdo disseminado pelo psiquiatra culminou em audiências no Congresso que foram inconclusivas, mas suficientes para o governo norte-americano iniciar um processo de censura contra os artistas. “Os editores de quadrinhos, temendo por sua sobrevivência, rapidamente passaram a evitar qualquer conteúdo, de qualquer tipo, que pudesse ofender qualquer pessoa em qualquer lugar”, escreve Miller.

Foi um período de queda nas vendas. Os artistas de HQs viviam uma espécie de marginalidade e sequer revelavam a sua profissão. O estrago causado pelo livro, como observa Miller, foi suficiente para os autores de quadrinhos parecerem “mortos”. “A liberdade de expressão é um oásis tão frágil e de natureza tão curta quanto os períodos de paz entre as guerras. A natureza humana é imutável”.

Mas é justamente dos ataques que surgem reações, espontâneas ou coordenadas, igualmente poderosas. Frank Miller lembra que, já na década de 60, diversos autores pioneiros trouxeram os quadrinhos de volta. “Se a natureza humana é imutável, o espírito criativo é igualmente indomável”, diz o autor de “O Cavaleiro das Trevas”. Nessa resposta, o universo HQ foi reinventado, e continua sendo, a cada novo ataque e a cada avanço geracional.

A atitude de Crivella reproduz, de certa forma, a cruzada que os conservadores norte-americanos comandaram naqueles não tão distantes anos 50. E, de certa forma, faz entender a imutabilidade da natureza humana nas suas diversas ações e reações. Crivella queria “esconder” das crianças um beijo gay nos quadrinhos por considerar algum tipo de influência negativa, e o tiro acabou saindo pela culatra, já que a imagem foi reproduzida em todo o país, pelas redes sociais, estampando até a capa da Folha de S. Paulo.

O prefeito carioca foi alvo de críticas não apenas no Brasil, como também no noticiário internacional. A reação foi imediata e partiu de diversos setores da sociedade. Se por um lado, a censura do prefeito do Rio flerta com um retrocesso de 60 anos passados, ela desperta também esse “espírito indomável” de natureza igualmente imutável. Nesse aspecto, o fim sempre estará próximo, a depender do ponto de vista de quem enxerga.

08 de setembro de 2019, 19:25

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