quarta-feira, 24 de abril de 2024

O hábito é vencido pelo hábito – por Tiago Ayres

O título desta breve reflexão é do padre alemão, Thomas de Kempis, universalmente conhecido, sobretudo, em razão da sua obra devocional “Imitação de Cristo”. Mas de tudo o que se fala sobre esse autor, a frase sobre a força do hábito merece a nossa especial atenção.

Aliás, uma outra frase que carrega a marca da sua genialidade é a seguinte: “o hábito torna suportáveis até mesmo as coisas mais assustadoras”. E não é que é assim mesmo? Pensemos no momento político que vivemos. Parecemos todos atônitos com o largo alcance da operação Lava Jato, prisões que outrora seriam concebidas como impossíveis. Rico atrás das grades? Poderoso clamando por socorro? Algo definitivamente impensável.

Observem que o nocivo hábito brasileiro de tripudiar impunemente do interesse público não passou despercebido ao arguto crivo do padre Antônio Vieira, que em seu O Sermão do Bom Ladrão, escrito em 1655, e proferido na Igreja da Misericórdia de Lisboa, perante D. João IV e sua corte, vaticinou que o Brasil (então colônia do Império ultramarino português) seria uma terra em que se conjugaria o verbo “rapio” (furtar) por todos os modos.

Dentre eles, um que se revela muito comum nos dias de hoje: o indicativo. Segundo o invulgar orador português, “[…] lá chegam (não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém) e começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes indiquem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo”.

Incontestável que ao longo de todos esses séculos funcionamos como o exemplo perfeito de Thomas de Kempis, amoldando-nos com invulgar precisão à sua constrangedora conclusão: nos acostumamos com coisas assustadoras, e o absurdo, por força do hábito, tornou-se suportável.

Mas o mesmo autor que nos leva a um cenário trágico, revelando que nos permitimos habituar com comportamentos estarrecedores, também nos permite concluir que temos em nossas mãos o antidoto dos nossos próprios venenos, consistente na substituição de um hábito por outro.

Os dias atuais parecem revelar que, enfim, começamos a ministrar o nosso próprio remédio. A sociedade brasileira parece estar muito mais consciente da sua capacidade de influenciar nos destinos do país, ao mesmo tempo em que deposita maiores esperanças nos órgãos de controle e de combate à corrupção.

Agora, portanto, é hora de cuidar desse novo remédio, aperfeiçoando-o, atentando, inclusive, para os seus eventuais efeitos colaterais… Fora de dúvida que no afã de superar o hábito da impunidade corremos o risco do hábito do desproporcional, da República de Justiceiros, da realização de “justiça” custe o que custar (não raro a ameaça ao próprio Estado de Direito), daí porque de nada valerá a superação do hábito da impunidade, se esta não vier seguida do imprescindível hábito da justiça equilibrada.

Tiago Ayres é advogado, mestre em Direito Público pela UFBA, professor da Pós-graduação em Direito Público da Faculdade Baiana de Direito e sócio do Escritório Ayres e Catelino Advogados Associados. Ele escreve quinzenalmente às terças-feiras no Toda Bahia sobre temas relevantes do Direito. E-mail: tiago.ayres@gmail.com

04 de novembro de 2015, 10:30

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