quinta-feira, 18 de abril de 2024

Morreremos todos, menos os Rolling Stones

Por Fernando Navarro*

Se alguma vez você pensou que algum dia vai morrer, pense antes, ou melhor, logo depois, nos Rolling Stones. Não porque não vão morrer, como já se prevê em qualquer casa de apostas, depois de superarem todas as estatísticas e bolões, mas porque possivelmente encontrará neles uma razão para que esta tragicomédia chamada vida mostre o descaramento como última bala, como um requebrado final com o qual ir com um sorriso para o túmulo. São idosos, milionários, desatualizados, arrogantes e estão pouco se lixando se são vistos como palhaços do circo que, como ninguém neste planeta maltratado, ajudaram a erguer: o circo do rock and roll, ao qual alguns, por sorte neste mundo repleto de descrentes e interessados, encontram ainda algum significado profundo.

Os Stones – não diga, por favor, Rolling, senhor, senhora – não buscam significados porque eles são o significado, com tudo o que isso implica. A esta altura da tragicomédia, só os mais ousados se atrevem a afirmar o que surgiu antes: o ovo ou a galinha, ou seja, o rock and roll ou os Rolling Stones. Mais de meio século de existência e a banda que simbolizou como nenhuma a rebeldia juvenil, o hedonismo e a liberação sexual continua em pé, impondo o peso de sua própria história, mas também como um centro comercial dando rédea solta a todos os males que rondam a própria essência do grande circo: a massificação desproporcional, o marketing descarado, a autocomplacência, o mimetismo…

Mas, então, na noite da última quarta-feira (27) em Barcelona, apesar do cabo de guerra causado pelo referendo, com puxadas de uns e outros, se ouviu, como uma tempestade anunciando o fim do mundo, Paint It Black, e tudo ficou no lugar. Os Stones puseram no lugar. Que se atrevam a dizer a qualquer garoto que estiver esmurrando seus instrumentos neste momento na garagem de seus pais que esses avós estão acabados. O garoto, disposto a chegar o mais alto com suas canções, acabará perguntando que maldita poção tomam esses velhotes para conseguirem o que querem.

Com Paint It Black, na metade do show, se agitam incontroláveis as filigranas viciosas das guitarras de Keith Richards e Ronnie Wood, Mick Jagger rebola enlouquecido como uma cobra doente buscando presas e tudo soa como um sonho lisérgico em que vale a pena adentrar. Mas custou.

Ao pular diante de cerca de 50.000 espectadores do Estadi Olímpic, os Stones começaram frios, como múmias, em Sympathy for the Devil, que perdeu toda sua carga maldita e sedução mórbida. Tudo apontava para o desastre nesse assunto planetário chamado Rolling Stones. Mas o grupo, dono de magia própria, foi crescendo com It’s Only Rock ‘n’ Roll (But I Like It) e, ainda mais, com Tumbling Dice, que soou pletórica, com os ventos e as coristas pondo a quinta marcha e Jagger dançando pela primeira vez na plateia central, com seus espasmos contagiantes. O estádio já estava dentro, como quando a sua equipe goleia no primeiro tempo.

A partir de Just Your Fool, se esforçaram por fazer do gigantesco palco um barzinho de blues. Com Jagger na gaita, tocaram Ride ‘Em on Down, também do último disco. Mas o cancioneiro novo, que não passa de versões dos bluesmen Buddy Johnson e Jimmy Reed, respectivamente, não tem consistência diante de clássicos imbatíveis, como Rocks Off e You Can’t Always Get What You Want, que mostraram no palco o brilho original que definiu o rock and rollstoniano para a posteridade. Isso também se deu com Happy no momento certo, embora na noite de domingo tenha soado descafeínada com Richards, a cada dia mais distante de seus melhores dias, no microfone. E, então, como com Paint It Black, dispararam os canhões: Honky Tonk Woman, Gimme Shelter, Jumpin’ Jack Flash, Brown Sugar – com Jagger correndo pela passarela- e Satisfaction, que encerou a atuação de duas horas com fogos de artifício e o público cantando a plenos pulmões. Todas eram selvagens, viciantes, imparáveis, cheias de vida impossível e atitude desavergonhada.

Se alguma vez você pensou que um dia vai morrer, pense nos Rolling Stones. Morreremos todos, menos eles, que continuarão lá, como uma lenda do próximo século.


* Artigo publicado na edição de terça-feira (03/10), no El País

03 de outubro de 2017, 12:35

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