sexta-feira, 19 de abril de 2024

Mamãe, mamãe, não chore – por Xico Sá

“Mamãe, mamãe, não chore, a vida é isso mesmo, eu vou embora”.

A canção do piauiense Torquato Neto, anjo torto do Tropicalismo, reverbera na caixa torácica ainda lambuzada com o Vick Vaporub materno da infância. Mamãe, mamãe não chore, todo cearense é antes de tudo um cigano que arma a sua rede no oco do mundo. Mamãe, mamãe, faz tanto tempo, lembro como se fosse hoje, te contei outro dia na praia do Futuro.

Aquele ovo estrelado sobre o arroz na chegada da escola, um ritual, uma cerimônia, meu Deus, não tem raio gourmetizador que me estrague esta madeleine. O baião-de-dois com pequi, ai de mim, meu Cariri, também era de prostar o sujeito. Queijo coalho derretido por cima, moqueado de teju quando possível, de confundir os céus com os beiços.

Sem se falar nos cafunés, o dengo, o cata-piolho no cocuruto a percorrer as veredas esquecidas pelo barbeiro Antônio Inácio. Um ovo ao ponto mais edipiano, gema molinha a colorir a capela sistina do céu da boca. Um ovo estrelado, mais conhecido entre nós como bife-do-zoião, que iguaria dos deuses. Só perdia para aquele rim de porco em dia de festa.

A vigília noturna diante do sono dos seis irmãos, candeeiro em punho, tua sombra gigante na parede do quarto, minha primeira sessão de cinema. Que mãe bonita a perder de vista. Sussurravas umas coisas incompreensíveis sobre cada uma das nossas redes, talvez orações para espantar a rasga-mortalha, ave agourenta que rondava o telhado na escuridão do rancho.

A assombração mais temida, no entanto, era bem cruel naquele Nordeste dos anos 1970: a mortalidade infantil que levava em média 150 crianças – com menos de um ano – em cada mil nascidas. Os “anjinhos” como eram conhecidos na forma natural e resignada dos pais. Testemunhei dezenas de enterros, inclusive de muitos parentes, dos caixõezinhos azulados.

Mamãe, mamãe não chore, escapamos das estatísticas e a rasga-mortalha ainda crocita, qual o corvo do escritor Edgar A. Poe, em nossas memórias. Não temos nada a reclamar da vida, além das queixas de rotina e do aperreio existencial no juízo amolecido sob o sol. Mamãe, mamãe, hoje a gente reclama de barriga cheia, ouço a tua voz em eco a cada manhã. “Acorda, menino, passarinho que não deve nada a ninguém já está nos ares”, lembro também desse mantra para combater a leseira matinal na rede. Ai que preguiça!

Depois do Torquato Neto na voz da Gal, mamãe coragem, sigo na trilha materna e escuto aqui “O Divã” do Roberto, bem baixinho, quase somente na caixa de som sem fios que o doutor Freud instalou em nossas cabeças. Irene, a tua neta de três meses e 15 dias, dorme, psiu!, o outono de São Paulo maltratou um pouquinho os seus brônquios, nada grave, Deus tomara. Larissa, a mãe, adormeceu na poltrona ainda em vestes de tigresa, depois de alimentar a cria, teta a teta, e me deixar falando sozinho uma das minhas histórias repetidas. Amar é deixar o outro em solilóquio com as suas piadas e chistes envelhecidos. Faço a vigília do sono das mulheres da casa enquanto batuco esta crônica para as mães de todos os dias.

Aumento um pouco o volume, três da madrugada, essas recordações me matam:

“Relembro a casa com varanda

Muitas flores na janela

Minha mãe lá dentro dela

Me dizia num sorriso

Mas na lágrima um aviso

Pra que eu tivesse cuidado

Na partida pro futuro

Eu ainda era puro

Mas num beijo disse adeus.”

14 de maio de 2017, 08:31

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