quinta-feira, 25 de abril de 2024

Fantasias argumentativas e a realidade constitucional – por Tiago Ayres

Surpreendi-me, quando da leitura do interessante “O Texto Jurídico e o Tapa Olho de Burro: ou de como o raciocínio jurídico não consegue enxergar o que importa” – embora não tenha concordado com as suas razões -, quando o seu autor, George Marmelstein Lima, tratou do conceito, que estaria ainda em construção, de “astúcia jurídica”.

Na mencionada reflexão, o autor explica a chamada astúcia jurídica como sendo a habilidade dos juristas em construir argumentos para justificar uma solução que foi tomada por outros motivos. “Ou seja, é a arte de dissimular os fatores reais da decisão por meio de uma roupagem que seja compatível com os parâmetros linguísticos aceitos pela comunidade epistêmica dos juristas”.

Embora não concorde com a defesa, procedida pelo articulista, da “prisão preventiva” de um Senador da República, como uma hipótese atípica conciliável com a Constituição, devo reconhecer que o conceito de astúcia jurídica, espécie de fantasia argumentativa, ou, como prefiro chamar, de discurso arranjado, é bem apropriado ao que o Supremo Tribunal Federal tem feito (ou seria desfeito?) no cenário jurídico brasileiro.

Para que não se tenha dúvida quanto à polêmica em derredor da prisão “em flagrante” do Senador Delcídio Amaral, segue a norma constitucional que disciplina o tema: “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”. (art. 53, § 2º, da Constituição Federal).

O Ordenamento Jurídico pátrio apenas rotula como crimes inafiançáveis o racismo, a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo, os definidos como crimes hediondos, o genocídio e os praticados por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Em princípio, ao menos do que consta da decisão do ministro relator, o senador da República preso não teve a sua conduta amoldada a qualquer dos mencionados rótulos penais.

Vê-se, portanto, que a hipótese é de decisão arranjada, fruto de contorcionismo linguístico, de fantasia argumentativa, o que pode ser tudo, menos uma decisão constitucionalmente comprometida. Aliás, em recentíssimo artigo, cujo título é “Para (não) entender a prisão de um Senador pelo STF”, os professores de processo penal, Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa, asseveram que “é até muito compreensível que os Ministros tenham se sentido ofendidos com o diálogo captado ilegalmente, mas completamente inadmissível que tais Magistrados tenham sido levados pela emoção a ponto de rasgarem a Constituição que prometeram cumprir”.

A impressão que fica é que, diante da exposição indevida dos nomes de alguns ministros do STF (possível exploração de prestígio), resultante de gravação ilícita de conversa sem consentimento do interlocutor, e sem autorização judicial (no caso, do STF, por envolver senador da República) tenha ganhado corpo a ideia de que foram sacados arranjos argumentativos para decisões já previamente adotadas.

O erro do STF é histórico e descomunal. Como guardião da Constituição, jamais poderia olvidar da lição daquele que foi um dos seus melhores ministros, Carlos Ayres Britto, que em sua obra A Teoria da Constituição, ensina que o poder da Constituição, tal qual o de Deus, tudo pode menos deixar de tudo poder.

Assim, tendo a Carta Política de 1988, na formação da sua vontade originária, proibido a prisão dos membros do Congresso Nacional, desde o momento da expedição dos seus diplomas, salvo nos casos de flagrante de crime inafiançável, não se poderia admitir que fantasias argumentativas vencessem a realidade constitucional.

Tiago Ayres é advogado, mestre em Direito Público pela UFBA, professor da Pós-graduação em Direito Público da Faculdade Baiana de Direito e sócio do Escritório Ayres e Catelino Advogados Associados. Ele escreve às terças-feiras no Toda Bahia sobre temas relevantes do Direito. E-mail: tiago.ayres@gmail.com

01 de dezembro de 2015, 07:00

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