quinta-feira, 25 de abril de 2024

Deus, o ministro e o diálogo sem sentido – por Tiago Ayres

Os cargos existem para que sejam ocupados. Bem ou mal, serão ocupados. Isso é fato. Mas algumas vezes o que simplesmente “tem que ser” ganha ares de invulgar oportunidade. Esse é o caso do privilégio que viveram o STF e a sociedade brasileira quando a vaga que “tinha que ser ocupada”, naquela Corte, em idos de 2003, o foi por um daqueles seres humanos que nos dão a certeza de que apesar de vivermos todos sob o mesmo céu alguns possuem horizontes mais elevados. Falo do poeta-jurista Carlos Ayres Britto.

O mestre sergipano, de horizonte privilegiado, pode nos auxiliar na compreensão da decisão do STF, nos autos do habeas corpus nº 126.292/SP, proferida na sessão do ultimo dia 17 de fevereiro, que desconstruindo jurisprudência estável, passou a admitir início da execução penal após o julgamento em segunda instância, sem exigência do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, em imperdoável afronta a expressa disposição constitucional.

Em sua prestigiada obra Teoria da Constituição , Carlos Ayres, sempre preocupado com a precisão pedagógica das suas lições, se vale de diálogo estabelecido com seu filho Marcel, então com apenas cinco anos, para explicar o poder constituinte originário, consistente no poder de construir e impor a vigência de uma constituição resultante do exercício da soberania popular.

Diz o professor na mencionada obra: “O meu filho Marcel tinha cinco anos de idade, quando travou comigo oseguinte diálogo: – Meu pai, é verdade que Deus tudo pode?- É verdade, sim, meu filho. Deus tudo pode.- E se Deus quiser morrer?- Bem, aí você me obriga a recompor a idéia. Deus tudo pode, é certo, menos deixar de tudo poder. Logo, Deus tem que permanecer vivo, porque somente assim Ele vai prosseguir sendo Aquele que tudo pode. […] Sobre este último aspecto da limitabilidade inerente a um ser que tudo pode (a relativização possível da onipotência), a conversa com meu pequeno filho trouxe-me à cabeça a utilidade pedagógica de uma comparação entre Deus e o poder que, na Ciência Política e na Teoria da Constituição, é chamado de Poder Constituinte”.

Percebe-se que o jurista já dizia naquela ocasião da onipotência do Poder Constituinte Originário, asseverando que este poder – tal qual Deus – só encontraria uma única limitação: a de não deixar de tudo poder. Mas o Supremo Tribunal Federal, no fatídico 17 de fevereiro de 2016, sonegando o seu mister de guardião da Constituição, parece ter tornado sem sentido o diálogo do ministro com seu filho, manipulando as opções constitucionais para alinhá-las aos seus propósitos circunstanciais.

Com tal julgamento, o STF reduziu a pó a força normativa da Constituição, tão bem defendida por Konrad Hesse. Se a própria revisão constitucional frequente, com escravização às exigências de índole fática, já é um mal insuportável, quanto mais quando há tenebroso ataque a cláusula pétrea por via interpretativa de ocasião. Vejam que a Constituição Federal, refletindo o exercício do poder constituinte originário (aquele poder que – por assentar-se na soberania popular – tudo pode, menos deixar de tudo poder), fez a seguinte e expressa opção em seu art. 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Por outro lado, a própria Carta Política de 1988 erigiu ao status de cláusula pétrea os direitos e garantias individuais, dentre eles o de não ser o cidadão considerado culpado antes do trânsito em julgado da decisão penal condenatória. Disciplina o art. 60, § 4º, da CF/88: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir […] IV – os direitos e garantias individuais”.

Ora, se sequer pode se deliberar sobre proposta de emenda tendente a abolir o direito fundamental de ser considerado inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, como conviver sem pânico com o comportamento do Supremo Tribunal Federal que parece ter iniciado em definitivo um estado de circunstancialismo moral?

Até quando o STF vai tornar sem sentido o profícuo dialogo entre Ayres Britto e seu filho Marcel? Até quando olvidará que a vontade constitucional – e não ele STF – pode tudo menos deixar de tudo poder? Até quando se perderá na crença de que por servir a um “Deus”, como seu guardião, torna-se Senhor da História?

O STF precisa resgatar o seu sensível papel institucional, servindo exclusivamente à vontade constitucional e não ao seu particular desejo de defender o seu circunstancial estatuto moral, assimilando, de uma vez por todas, a lição de São Francisco de Borja, segundo a qual “nunca se deve servir a um senhor que possa morrer”. Os desejos individuais de justiça ocasional morrem; os desejos constitucionais jamais.

Tiago Ayres é advogado, mestre em Direito Público pela UFBA, professor da Pós-graduação em Direito Público da Faculdade Baiana de Direito e sócio do Escritório Ayres e Catelino Advogados Associados. Ele escreve às terças-feiras no Toda Bahia sobre temas relevantes do Direito. E-mail: tiago.ayres@gmail.com

23 de fevereiro de 2016, 07:00

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