quarta-feira, 24 de abril de 2024

Apertem os cintos, o Direito sumiu – por Tiago Ayres

É absolutamente devastador constatar que mais nada pode surpreender negativamente o povo brasileiro em matéria de corrupção. A praga é antiga, tendo o padre Antônio Vieira, em seu famoso “Sermão do bom ladrão” advertido que o verbo “furtar” era conjugado em todos os tempos naquela outrora colônia portuguesa que mais tarde tornar-se-ia esse amontoado de problemas chamado Brasil.

Segundo Vieira, considerado o maior orador sacro de todos os tempos, na então colônia, conjugava-se o verbo furtar, dentre outras formas, pelo modo indicativo, “porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhe apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo” e também pelo modo imperativo, “porque, como têm império, despoticamente o empregam às execuções de rapina”.

Vê-se, portanto, que a cultura da corrupção tem berço vigoroso, tendo sido apenas redesenhada com a inventividade e sofisticação próprias de quem dela faz ofício. Mas o que jamais se imaginou – e aí sim parece ser uma repugnante e intempestiva novidade – é que, a pretexto de se combater a corrupção, implementa-se, nestes dias, a mais palpitante vulneração do Direito.

Vamos direto ao ponto. A operação Lava Jato desencadeou uma crise no direito brasileiro nunca vista, seja quando capitaneou vergonhosos episódios de restrição ao livre exercício da advocacia (histórica e universalmente ligada à cidadania em regimes democráticos), seja quando fulminou direitos e garantias dos próprios presos e investigados.

Causando invulgar espanto, policiais federais de Brasília acusaram os seus colegas paranaenses de instalar clandestinamente escutas com o propósito de captar conversas de presos e dos próprios policiais. Aliás, segundo veiculado pela mídia, uma dessas escutas teria sido descoberta na cela do doleiro Alberto Youssef, testemunha das mais relevantes do esquema de corrupção.

Em maio do ano passado, o doleiro identificou um transmissor de voz no forro do teto de sua cela. Os corregedores da Polícia Federal passaram a apurar delegados da Lava-Jato por terem supostamente colocado o aparelho para obtenção de provas por meio ilícito.

Um outro lamentável episódio, já agora evidenciando o claro desapreço para com a advocacia brasileira, consistiu na proibição da advogada de um dos empresários presos preventivamente acompanhar o seu depoimento, ao argumento de que não poderia participar do depoimento porque, como integrante da defesa do empresário, teria sido destinatária de um bilhete do seu cliente que ordenava a destruição de determinada mensagem eletrônica.

Percebe-se, sem qualquer esforço, que a conduta da Polícia Federal, neste particular, revelou um descomunal equívoco histórico, um gesto contra uma instituição que tem na defesa da cidadania o seu centro gravitacional. É direito de formidável essencialidade a escolha do seu defensor pelo cidadão, uma relação de especialíssima confiança.

Não podem as autoridades policiais ou judiciais, sem tripudiar do Estado Democrático de Direito, impor restrição ao direito do cidadão (que mesmo preso não deixará de sê-lo, mormente quando o for preventivamente) de escolher o seu advogado. Só e somente só a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pode deliberar sobre a suspensão do exercício profissional por falta disciplinar, não podendo qualquer autoridade diminuir o exercício da advocacia brasileira.

Ainda bem que a OAB está vigilante, evitando uma violenta colisão de tais práticas nada republicanas com os caros valores constitucionais. O direito sumiu, o país anda desgovernado, mas na OAB temos encontrado o nosso cinto de segurança.

Tiago Ayres é advogado, mestre em Direito Público pela UFBA, professor da Pós-graduação em Direito Público da Faculdade Baiana de Direito e sócio do Escritório Ayres e Catelino Advogados Associados. Ele escreve às terças-feiras no Toda Bahia sobre temas relevantes do Direito. E-mail: tiago.ayres@gmail.com

21 de julho de 2015, 07:45

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