quinta-feira, 28 de março de 2024

A Constituição (e não Eduardo Cunha) pode tudo – por Tiago Ayres

Carlos Ayres, ex-presidente do STF, um dos mais respeitados juristas do país, narra, em sua festejada obra “Teoria da Constituição”, um diálogo travado com um dos seus filhos em que o mesmo o teria questionado sobre o alcance do poder divino.
A singela e desafiadora pergunta foi lançada da seguinte forma: “Pai, Deus pode tudo?” Ao que o jurista sergipano, com o auxilio da sua fina inteligência respondeu: “Não meu filho. Deus pode tudo, menos deixar de tudo poder”.

E foi a partir dessa reflexão que Ayres Britto construiu uma analogia absolutamente pertinente com o momento de criação da Constituição de um país, norma fundamental, referência valorativa maior de todo e qualquer estado democrático de direito. Assim, tal qual Deus, o Poder Constituinte Originário (instituído para a elaboração das Constituições), pode tudo, menos deixar  de tudo poder.

A ideia, portanto, é enfatizar a reverência que se deve ter para com os valores originariamente previstos na Constituição, formadores da chamada “vontade constitucional”, aperfeiçoada pela contribuição interpretativa dos diversos atores sociais.

Daí porque o texto constitucional revela considerável rigor na disciplina do devido processo legislativo, tudo para que essa vontade originária seja preservada, não ficando ao alvedrio das autoridades de plantão e das forças circunstâncias.
Dentre tais regras, uma em especial merece destaque, sobretudo porque foi recentemente violada pelo próprio Poder Legislativo, cujos equívocos de atuação têm se personificado na figura do seu presidente, Eduardo Cunha.

O art.  60, § 5º, da Constituição é claro ao afirmar que “A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.

Consoante divulgado largamente pela mídia nacional, tendo em vista que a primeira proposta de redução da maioridade penal, que incluía também o crime de roubo agravado, foi rejeitada pela Câmara por cinco votos na quarta-feira (1º/7), na quinta-feira (2/7), o deputado Rogério Rosso (PSD-DF) apresentou uma emenda aglutinativa e o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), levou a matéria a votação novamente, tendo sido aprovada por 323 votos a 155.

A OAB bradou. Em nota, afirmou que “Se for aprovada pelo Senado, iremos ao STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para que o Supremo faça prevalecer a hierarquia e a autoridade da Constituição. Temos de ter a clareza que a alteração tópica da redação de uma PEC não é suficiente para retirar um fato: a matéria foi rejeitada em um dia e aprovada no dia seguinte. É justamente esse fenômeno que a constituição proíbe”.

Asseverou, ainda, que entende ser um “equívoco colocar mais alunos nas universidades do crime, que são os presídios do País”. Para a Ordem, é “mais adequado aumentar o rigor de sanção do Estatuto da Criança e do Adolescente, aumentar o prazo de internação, ampliar o período diário de serviços comunitários para quem comete delitos, obrigar a frequência escolar e o pernoite em casa, além de investir na inclusão de todos. Outra medida importante é punir de forma mais grave os maiores que se utilizam de menores para o cometimento de crimes”.

Entretanto, e apesar da posição da OAB, não se questiona, aqui, o conteúdo da decisão do Legislativo quanto à redução da maioridade penal, reflexão que exige maior cuidado e que conta com pontos de vista diversos e ao mesmo tempo consistentes.

O esforço aqui é outro. O que se quer evidenciar é a imperiosa necessidade de se combater a desfiguração constitucional capitaneada (pasmem!) pelo próprio Poder Legislativo. Carlos Ayres ensinou, “é a Constituição quem pode tudo”… E não você, Eduardo.

Tiago Ayres é advogado, mestre em Direito Público pela UFBA, professor da Pós-graduação em Direito Público da Faculdade Baiana de Direito e sócio do Escritório Ayres e Catelino Advogados Associados. Ele escreve às terças-feiras no Toda Bahia sobre temas relevantes do Direito. E-mail: tiago.ayres@gmail.com

07 de julho de 2015, 07:30

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